‘Me assumi mulher transgênero aos 50 anos, depois de ter um enfarte’

“Nasci em uma família católica extremamente religiosa em Belo Horizonte. Recebi o mesmo nome do meu pai, Geraldo, como era comum naquela época. Na infância, nos anos 1950, nunca me identifiquei com o modelo de homem – não queria saber de carrinho, bola de futebol, nem torcer para o Galo. Queria mesmo brincar de boneca, pura e simplesmente.

Eu achava lindos os sapatos da minha mãe, me encantava ver o salto alto, olhava as roupas das minhas primas e aquele sim era, para mim, um mundo maravilhoso. Só que eu não tinha o passaporte para entrar ali. ‘Isso é coisa do capeta’, me diziam quando eu perguntava por que não podia brincar de boneca. ‘Deus não quis’ era outra das explicações estapafúrdias que eu ouvia. Há 70 anos, qualquer coisa que fugisse à norma de conduta estabelecida pela sociedade era considerada pecado.

Na escola, eu não queria ficar com os meninos, mas não podia brincar com as meninas, era horrível. Sentia uma profunda solidão, um eterno isolamento. Tudo que queria era pertencer a um grupo, mas onde eu me reconhecia não era legitimada e com aquele onde deveria me reconhecer não tinha a menor afinidade. Esse foi o meu calvário durante toda a infância. Tudo na minha vida era repressão. Cada vez que eu manifestava um desejo de usar saia, por exemplo, parecia que estava sujeitando minha família a algum tipo de atentado, todo mundo enlouquecia.

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Me lembro que, lá pelos 7 ou 8 anos, eu já invadia o armário da minha mãe. Por causa disso tomei várias surras. Gostava muito das meias de seda dela, que naquela época eram caras, usava todas escondido. Mas sempre puxava algum fio e minha mãe descobria, era um drama. Ela nunca compreendeu a minha realidade.

Fui a primeira de seis filhos. Em seguida veio minha irmã, que morreu com uma semana de vida, quando eu tinha 2 anos. Isso marcou profundamente os meus pais. Depois, eles tiveram mais quatro meninos. Muitas vezes na terapia disseram que sou assim por vontade do meu pai e da minha mãe de repor a filha que perderam, mas não acredito nisso.

Uma vez, quando eu tinha 17 anos, fomos passar férias no Espírito Santo e eu voltei uns dias antes para estudar para o vestibular. Sozinha em casa, me pus à vontade. Um dia eu estava lá bem montadinha quando vejo a chave mexer na porta. Era meu pai. Não deu tempo de me trocar e ele me viu assim, com roupas de mulher. Ele apenas anunciou que à noite iríamos sair. Ele era muito carinhoso, uma pessoa muito sensível e entendia como eu era, mas se preocupava.

Naquela época, os pais tinham o costume de levar os filhos para casas de prostituição para que tivessem sua primeira vez, o popular ‘desmame’. Temi que esse fosse seu plano. Ele de fato me levou para a zona de prostituição da cidade, mas apenas me mostrou um travesti na rua. ‘É isso que você quer ser?’ Disse que eu viveria no máximo cinco anos e seria morta por alguma bala, ‘porque essas pessoas não têm acesso nenhum na sociedade’. Foi muito duro ouvir isso e saber que ele só estava tentando fazer o melhor por mim. Mas o conflito maior ainda estava por vir.

Apesar de me identificar como mulher, eu descobri na adolescência que gostava de mulher. Essa é outra questão que eles nos impõem: se você nasceu macho, é classificado como homem e tem que gostar de mulher; se você nasceu fêmea, é classificada como mulher e tem que gostar de homem. Então, na minha cabeça, havia esse jogo. Se me identificava como mulher, devia ser homossexual e ter desejo por homens. Mas não tinha.

Quando descobri que sentia atração por mulheres, pensei: vou duas vezes para o inferno, porque eu quero ser mulher e ainda gosto de mulher. Na época não era comum ver lésbicas, isso era muito velado. Tive muitas namoradas, até uma noiva, mas elas nunca souberam de nada.

Certa vez, fui morar no Rio de Janeiro a trabalho. Lá, tudo era diferente para mim. Morando sozinha, eu tinha meu guarda-roupa com o que eu queria. À diarista, falava que eram coisas que guardava para minha irmã. Já de volta a Belo Horizonte, me encantei por uma mulher, Angela, numa aula de alemão. Eu estava com 26 anos na época. Depois de um ano e meio, decidimos nos casar.

Uma semana antes da cerimônia, no entanto, enlouqueci. Angela não sabia que eu era uma mulher, não podia fazer isso com ela. Então meu pai me deu um conselho: se algum dia ‘aquilo’ voltasse, certamente ela iria me entender. Gostava muito de mim, afinal. Concordei. Subimos ao altar em setembro de 1977. Eu me senti muito bem no nosso casamento.

A vida seguiu, veio nossa primeira filha e a gente foi levando. Eu não sentia necessidade de contar nada para ela nem para ninguém. Ao longo dos anos, tive apenas uma ‘recaída’ forte durante nosso casamento, quando ela foi passar um tempo com a mãe após a morte do irmão. Fiquei sozinha em casa. Aproveitei e comprei vestido, sapato, tudo que queria. Parece que a morte traz essa necessidade de vida. A minha grande preocupação era não parecer o que eu sempre fui, e isso era pesado. Eu era casado, chefe de família, consultor empresarial, e a ideia de pecado ainda prevalecia. O ‘armário’ é a punição mais eficiente que a sociedade aplica às pessoas, porque se sair é porrada mesmo.

Até que não aguentei mais. Quando meus pais estavam completando 50 anos de casados, ele sofreu um grave acidente e ficou à beira da morte. No hospital, descobrimos que meu pai tinha outra família havia 25 anos. Logo ele, que sempre funcionou como meu grande bloqueio moral, fazer uma coisa dessa? Uma analista me dizia que os dois ficaram no presídio em que minha mãe nos colocava, só que à noite ele saía e eu continuava presa. Aquilo foi a gota d’água. Seis meses depois, eu tinha um guarda-roupa todinho montado, mesmo morando com a Angela. A gente nunca teve o hábito de mexer nas coisas uma da outra e isso me deixava segura.

Quatro anos depois, apesar de nunca ter tido problema de coração, não aguentei mais o estresse de me manter em segredo. Eu tinha que contar para todos, família, clientes, amigos… Lenta e secretamente, eu vinha fabricando uma bomba-relógio que finalmente explodiu dentro de mim. Pifei. Fui parar na UTI. Lembro da médica dizendo que tive um enfarte e não morri porque levava uma vida saudável. Se minha forma física estava ótima, a emocional andava péssima. E eu sabia disso.

Ser uma pessoa e me apresentar ao mundo como outra fez meu coração gritar. Jurei para mim naquela cama de hospital: se eu sair dessa porcaria inteira, acabou. Vou ser livre. Transicionar era a única coisa a ser feita se eu quisesse continuar viva. E foi o que fiz.

Primeiro, decidi sair de casa. Peguei minhas coisas e fui para um hotel. Angela achou que eu tinha enlouquecido. Marcamos encontro em um posto de gasolina para conversar. Virei para ela e falei que gostava de me vestir como mulher. ‘Mas é só isso? Então vamos embora para casa.’ Até então ela achava que eu tinha outra, não tinha entendido que a outra era eu. Por respeito a mim e a ela, me abri.

Os primeiros tempos foram muito difíceis, não por nós, mas pela sociedade. Minha família foi maravilhosa, com cada filho que conversei senti a recompensa da educação que a gente deu. Com a menina foi só um pouco mais difícil, porque ela achou que iria perder o pai. Isso é uma coisa muito interessante para quem transiciona, porque as pessoas que estão à volta têm medo de nos perder. Sei que não foi fácil para a Angela, mas a gente tinha muitos anos de casa e um vínculo afetivo muito forte, não queríamos abrir mão disso.

Fora a minha família, não tive apoio. As pessoas achavam horrível eu transicionar depois dos 50 anos, ‘isso era coisa para jovem’. Morria de raiva. Me desqualificaram de muitos modos, já ouvi que não tenho representatividade porque nunca fiz pista (catar cliente à noite para prostituição).

Por um período, vivi em casa como mulher, mas ia trabalhar de terno e gravata. Cursei economia, mestrado em administração e atuei por 30 anos como consultor empresarial. Mas, quando fiz a transição, todos os clientes da consultoria me deixaram. Fiquei sem dinheiro e sem perspectiva. Angela teve que assumir a casa. Entrei em crise. Tinha noites que eu ia dormir desejando não acordar. Me sentia como um filme ao qual você assiste até uma parte, constata que está ruim demais e não quer mais continuar assistindo. Essa era a minha vida.

Entre o momento em que comecei a transição e aquele em que assumi viver como mulher publicamente, 24 horas por dia, foram dez anos. Já cogitei muito ao longo da vida fazer cirurgia de redesignação, mas cheguei à conclusão de que minha questão não é com o órgão genital. Já os seios para mim eram fundamentais, na minha organização espacial como pessoa no mundo faltavam peitos femininos, e eles vieram só com tratamento hormonal, nunca fiz cirurgia.

Quando fiz a transição, minha mãe e eu ficamos dez anos sem nos ver. Há uns três, fomos visitá-la. Quando me viu, ela disse que eu estava bonito, assim no masculino mesmo. Mas não me importo com isso. Depois, quando Angela e eu fomos dar uma volta na cidade, ela me disse para aproveitar e comprar um batom. Passei horas procurando um que ela pudesse gostar. Foi nosso encontro mais relaxado desde que transicionei.

Meu pai morreu há alguns anos. Ele foi seguramente o melhor homem que eu conheci porque me aceitava com o coração, embora fosse difícil me compreender com a cabeça. Sem ele, a vida teria sido muito pior. O que me salvou foi a psicanálise. Se não fosse a terapia, eu teria enlouquecido. Quando me vi sem minha profissão da vida toda, resolvi estudar e me tornar psicanalista. Os clientes começaram a surgir e vi que tenho coisas boas a oferecer às pessoas.

Fonte – Marie Claire

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